A coisa e outros contos
A paixão, o amor e a hipocrisia da sociedade burguesa sempre estiveram presentes na escrita de Alberto Moravia (1907-1990). Nos textos selecionados da obra A coisa e outros contos, presentes no volume lançado agora pela CARAMBAIA, aquele que foi um dos maiores romancistas italianos do século XX vai um passo além. Em uma de suas obras mais surpreendentes, o autor apresenta uma ideia de sexo livre de qualquer constrangimento moral ou psicológico.
A edição reúne catorze contos de teor erótico do livro original, de 1983. Eles foram traduzidos por Maurício Santana Dias e fazem parte da Coleção Sete Chaves, que tem a curadoria de Eliane Robert Moraes, especialista em literatura erótica. Nos textos, Moravia passeia pelos mais diversos fetiches, fantasias, perversões, obsessões, pulsões e tabus da natureza humana – sobretudo da perspectiva masculina.
“A coisa” que dá título ao livro e ao primeiro conto é um termo que aparece com frequência nas histórias, sem que seu significado seja sempre elucidado, como nota Eliane Robert Moraes em seu posfácio “Olho na fenda: Moravia diante da coisa feminina”. Vez ou outra, diz ela, a coisa em questão permanece em segredo, embora seus significados estejam sempre vinculados às “coisas do amor”.
É assim no conto de abertura, sobre o reencontro de Diana e Margherita, que se relacionaram quando estudaram juntas em um colégio de freiras, aos 13 anos, época “em que se está sempre à procura de alguma coisa que ainda não sabe o que é”, escreve Moravia.
Fantasias masculinas recorrentes aparecem em textos como “Ao deus desconhecido”, em que a personagem Marta é uma enfermeira que dispensa cuidados especiais a seus pacientes, até limites que estabelece por consciência profissional. Como não poderia deixar de ser, diferentes tentações povoam os textos, algumas vezes até como disfarce do próprio diabo. É o caso do texto mais longo do volume, quase uma novela: “O diabo não pode salvar o mundo”.
Há enredos perturbadores, como é comum na literatura erótica, envolvendo desejos proibidos, relações familiares ou prazeres menos convencionais – como no inquietante “A cicatriz da operação” ou no magistral “O cinto”. Em outros, sexo e desejo são apenas sugeridos em tramas nas quais amores passados, paixões não correspondidas, ciúmes, saudades e solidão assumem o primeiro plano da narrativa.
Uma característica comum em boa parte dos contos é a presença do voyeurismo – “elemento essencial da erótica do autor”, como explica Eliane. Essa modalidade sexual em particular, já sugerida em obras anteriores, torna-se mais e mais pronunciada na produção de Moravia – assim como no erotismo em geral –, a partir dos anos 1970. “Suas histórias quase sempre apresentam personagens masculinos que têm prazer em observar secretamente corpos femininos nus, como se esse tipo de contemplação fosse absolutamente necessário para fazer nascer o desejo e, mais ainda, para efetivá-lo”, escreve no posfácio.
A obra de Alberto Moravia passou muitos anos proibida na Itália. Autor antifascista engajado politicamente e militante de esquerda, foi impedido de publicar pelo regime de Mussolini, tendo obras confiscadas. Já no pós-guerra, foi alvo da Igreja Católica que, em 1952, incluiu seu nome no famoso Index Librorum Prohibitorum. Os censores do Santo Ofício consideraram sua literatura imprópria e herética devido ao “conteúdo lascivo e obsceno”. E isso mais de três décadas antes de o autor lançar A coisa.
Moravia foi casado durante mais de duas décadas com a principal escritora italiana de sua época, Elsa Morante, com quem teve uma ligação intensa que sobreviveu ao fim do matrimônio e durou até a morte dela, em 1985. Quando o identificavam como o maior romancista italiano, aliás, ele costumava reagir dizendo que o título pertencia à esposa.
Moravia recebeu 23 indicações ao Prêmio Nobel de Literatura, sem nunca ter ganhado. Manteve uma produção ininterrupta, seja como romancista, contista e ensaísta, seja como roteirista e crítico de cinema, jornalista e correspondente internacional ou dramaturgo. A militância política o levou a assumir, no final da vida, a cadeira de deputado do Parlamento Europeu, representando o Partido Comunista Italiano. Publicou até morrer, em 1990, em Roma.