A SUBSTITUIÇÃO: OU AS REGRAS DO TAGAME - 1ªED.(2022)
Shisosetsu: palavra japonesa para designar romance autobiográfico. Se tem uma palavra que resume a obra de Kenzaburo Oe é esta. A atual obra não é exceção. Oe se supera na mescla de elementos ficcionais conjugados com peças da vida real, indo muito longe na transliteração para o romance de personagens existentes, inclusive em sua família mais próxima. Nada se cria e tudo se substitui.
Em elaborado jogo de espelhos, Oe traz à baila a persona de seu cunhado, o cineasta Junzi Ito (de Tampopo, os brutos também amam, no título brasileiro), ora a de seu filho Hikari, ora a da irmã de Junzi Ito, com quem está casado há décadas, ora causos angariados em viagens internacionais. Provêm também da vida real seus entreveros com os yakuzas, os mafiosos japoneses, os agrupamentos direitistas que o assediam por suas posições pacifistas e antinacionalistas pelas quais se notabiliza num Japão em tentativa revisionista da constituição antibélica.
Também coloca em evidência com generosas doses de verve as sandices do mundo acadêmico, as mazelas do jornalismo à la paparazzi, os grupelhos da juventude à saída de Segunda Guerra Mundial.
Nada é completamente fictício, e nada é real por inteiro. A dosagem é fluida. A reflexão sobre o criar, seja na escrita, seja na música, e aqui paira, sereno, o filho — mais uma vez a vida real se sobrepondo à romanceada. Ou o oposto... E em reverentes piscadelas à literatura universal aparecem os franceses de seus estudos, de Rabelais a René Char, assim como Thomas Mann, Blake e Eliot, este último definitivamente colega de cabeceira nas noites toquiotas.
Em introspeção derivada de histórico de vida inteira, Oe amarra seus protagonistas Goro, o cineasta amigo dado a todos os prazeres e finalmente suicida, e Kogito, o escritor de sucesso mas em desprestígio de público e de vendas, mediante um engenhoso artifício interposto que batiza Tagame, em analogia a uma espécie de besouro marinho, o que permitirá ao escritor manter a imensa admiração que tem pela figura de seu cunhado que decidiu partir para outra, privando-lhe assim de sua amizade, mas ao mesmo tempo preservando-a graças ao Tagame.
Oe lança nesta primeira parte de sua grande trilogia da idade madura um árduo grito sobre a “vulnerabilidade fundamental do homem”, em seus próprios dizeres, e que ele remói a fundo para destrinchar as fronteiras abissais da amizade humana.