ARQUIPELAGO GULAG - 1ªED. (2019)
Arquipélago Gulag, obra-prima do russo Aleksandr Soljenítsyn (1918-2008), prêmio Nobel de Literatura, foi escrita clandestinamente entre 1958 e 1967. Para contar a história, construída a partir do testemunho de 227 sobreviventes dos campos do Gulag, na União Soviética, Soljenítsyn precisou montar uma verdadeira operação secreta. Passou duas temporadas em um sítio na Estônia, longe da vigilância soviética, onde escreveu a maior parte do texto. Com o manuscrito pronto, aquartelou-se em uma casa de campo próxima a Moscou, onde revisou, datilografou e microfilmou cada página em 1968. Uma cópia foi entregue a uma amiga francesa, que naquele mesmo ano contrabandeou o livro para fora da cortina de ferro.
A primeira edição de Arquipélago Gulag foi lançada em Paris no final de 1973, mesmo ano em que o manuscrito foi descoberto pela KGB. Poucas semanas depois do lançamento, o autor foi preso, acusado de “alta traição”, teve a cidadania soviética retirada e foi obrigado a deixar a URSS. Isso não impediu para o livro fosse traduzido para dezenas de línguas, recebesse críticas positivas e vendesse milhões de cópias.
A CARAMBAIA publica agora a obra, traduzida diretamente do russo por Lucas Simone, com Irineu Franco Perpetuo, Francisco de Araújo, Odomiro Fonseca e Rafael Bonavina, pelo selo Ilimitada, a partir da última versão do livro – condensada, apesar de ter perto de 700 páginas. Esse trabalho foi realizado por Natália Soljenítsyn, a pedido do próprio autor, com o intuito de atrair novos leitores, já no final da vida. Os três volumes originais foram reduzidos a um só, preservando a estrutura de capítulos da obra original. A capa foi desenhada por Mateus Valadares.
Aleksandr Soljenítsyn nasceu em dezembro de 1918 na cidade de Kislovodsk, entre os mares Negro e Cáspio, quase na fronteira com a Geórgia. Sua mãe, Taisiya, tinha ascendência ucraniana e seu pai, Isaakiy, morto em um acidente poucos meses antes do nascimento de Aleksandr, era um agricultor rico e oficial do Exército Imperial russo.
Desde sua juventude teve uma relação conflituosa com o governo bolchevique. Seu berço social – uma família de origem mujique (camponesa), dona de terras até antes da Revolução – representava, por si só, um problema. Foi um admirador de Lenin, mas nunca se entusiasmou com Stalin. Seu rompimento definitivo com governo socialista viria só na época da Segunda Guerra Mundial. Em fevereiro de 1945, já desiludido com o rumo político da URSS, escreveu uma carta a um amigo criticando o governo de Stalin – chamado por ele, ironicamente, de “Chefão”. A correspondência foi interceptada e Soljenítsyn acabou condenado a oito anos de prisão.
Publicou em 1962 o romance Um dia na vida de Ivan Deníssovitch, um relato árido do cotidiano no Gulag escrito a partir da própria experiência. Soljenítsyn passou quase dois terços da pena em um campo do Gulag, onde foi pedreiro e trabalhou com usinagem. O romance provocou uma comoção nacional e o autor se tornou ícone instantâneo da nova literatura pós-stalinista, recebendo o prêmio Nobel de Literatura em 1970.
Depois da publicação dessa primeira história sobre o Gulag, dezenas de outros ex-prisioneiros passaram a procurar o autor, pessoalmente ou por correspondência. Queriam compartilhar seus relatos pessoais, que acabaram servindo de fonte documental para Soljenítsyn conceber, ao longo da década de 1960, os três volumes que deram origem ao Arquipélago Gulag, que o autor definiu, no subtítulo, como “um experimento de investigação artística”.
Arquipélago Gulag é um testemunho íntimo e épico. É narrativa histórica detalhista e, ao mesmo tempo, um ensaio político-filosófico ambicioso. Sua originalidade não está na denúncia dos campos de trabalho forçado, pois dezenas de ex-prisioneiros já haviam publicado memórias na década de 1970. O que distingue o livro de Soljenítsyn é a escala da empreitada (mais de duzentos relatos enviados ao autor serviram de fonte documental), a forma (uma “investigação artística”) e a qualidade literária. Seus personagens têm vida, profundidade, caráter, nobreza. O relato histórico é pano de fundo para uma reflexão sobre o bem e o mal. O humanismo do Arquipélago Gulag é adversário não apenas do comunismo, mas de toda ideologia que justifica a imoralidade – da inquisição ao colonialismo. O “socialismo real”, para Soljenítsyn, é uma concretização, é consequência lógica, do projeto secular e materialista da modernidade.
A obra é um monumento forjado no calor da disputa política. Por isso, desde a década de 1970 se tornou prisioneiro de uma caricatura: ser visto apenas como “literatura anticomunista”. O próprio Soljenítsyn alertou: “Que largue o livro quem espera que ele seja uma denúncia política”.
A publicação do Arquipélago Gulag levou à deportação de Soljenítsyn. Depois de passar dois anos na Europa Ocidental, se estabeleceu com a esposa na área rural de Vermont, nos Estados Unidos, em 1976, e dedicou os próximos anos à criação de A roda vermelha, coleção de romances trágicos sobre a Revolução Russa.
Soljenítsyn voltou para a Rússia em maio de 1994, depois de vinte anos de exílio. Morreu em 2008, aos 90 anos. No final do ano passado, na comemoração de seu centenário, foi oficialmente reabilitado pelo governo russo.