CONTRIBUIÇÃO PARA A GUERRA EM CURSO
O livro que publicamos agora, Contribuição para a guerra em curso, apareceu originalmente no primeiro número da revista francesa Tiqqun (Tiqqun Olam, conceito da tradição judaica, significa reparação, restituição, redenção do mundo), há anos. Tratava-se de ler o contexto contemporâneo como uma guerra civil entre formas-de-vida. Ora, como não perceber a atualidade dessas ideias e análises no Brasil de hoje? Não vivemos nós uma guerra civil, com a militarização declarada do enfrentamento político, onde o fascismo ascendente pretende suprimir as formas-de-vida que não obedeçam a seu padrão branco-macho-conservador-evangélico-heteronormativo-patriota-neoliberal-humano-demasiadamente-humano? Há exemplo mais gritante do que o nosso de uma guerra civil declarada e tamponada a um só tempo, do uso ilimitado da violência institucional ou jurídica sob o manto risível da democracia?
Mas outra coisa chamava a atenção nesta revista. Ninguém assinava os textos, não havia menção a um comitê de redação. O anonimato era uma estratégia política. Se a autoria em nossos dias é um trampolim para a celebridade, um veículo para o narcisismo ou a picareta para o alpinismo cultural, é preciso lembrar que ela surgiu no passado também como um dispositivo de responsabilização penal: quem escreveu essa blasfêmia, quem pregou a derrubada do Príncipe, quem deve ser incriminado? Por conseguinte, tal como as máscaras nas manifestações de hoje, o anonimato é uma estratégia de despiste frente aos instrumentos repressivos do Estado. Não à toa os “mascarados” foram proibidos nos atos públicos ultimamente. Este livro vai na contramão dessa patrulha identitária.
Para além desse embate policialesco, certa tradição que começa em Nietzsche e atravessa o século XX até Blanchot e Foucault tratou de destituir o eu (o sujeito, o autor) como fonte ou centro da obra. É o fim da propriedade privada no plano do pensamento, e a percepção de que a linguagem, assim como a terra ou a água, são da ordem do comum, na contramão de uma privatização crescente de tudo.
O estilo cáustico e demolidor, a radicalidade política, existencial, vital, impacta o leitor já nas primeiras frases. Todo o esforço desses textos está em diagnosticar onde e como a esquerda mesma enterrou a revolução enquanto processo, desejo, irreverência, criação de mundo.
Não faltam nestes livros libertários referências históricas, desde a Comuna de Paris até Maio de 68. Quanto aos autores invocados, mesmo quando não são mencionados (não há notas de rodapé!), compõem uma nebulosa contestatária que inclui Debord, Agamben, Foucault, Deleuze-Guattari, mas também Marx, Benjamin, Espinosa... Ou ainda Walser, Musil, Blanchot. A erudição em momento algum se traduz em academicismo estéril. A análise corrosiva funciona como uma metralhadora giratória, sem concessões humanistas ou piedosas, sem ortodoxias doutrinárias ou partidárias, sem tolerância para com o assembleísmo ou a Realpolitik, donde os coices, por vezes raivosos e até injustos, a “vizinhos” como Negri, operaístas ou teóricos do cognitariado, ortodoxias marxistas, ou até mesmo a movimentos que “negociam” com a polícia o trajeto e o horário de suas manifestações.
É um livro que se situa entre a análise, a convocação, o manifesto, a persistência ética – e por isso mesmo, da maior urgência para o Brasil de 2019.