Dois anos na caçamba: desencanto em poema-prosa de um analista no Texas

Dois anos na caçamba: desencanto em poema-prosa de um analista no Texas

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Nos ombros, a bolsa que leva os aparelhos médicos. Diante dos olhos, a imensidão plana e despovoada. No coração, a intensidade da poesia. Esse era o Dr. Carl Winter, médico alemão exilado nos pampas gaúchos, e um dos mais fascinantes personagens da saga verissiana de O Tempo e o Vento. É a imagem desse médico que ecoa nas páginas deste Um analista no Texas, do Dr. Antônio Lúcio
Teixeira: dois exilados em terras estrangeiras, dois mestres em aplicar o rigor científico à arte hipocrática – aqui cumpre pontuar que Antônio Lúcio é um dos mais prolíficos neurocientistas
brasileiros de sua geração, com notáveis contribuições ao entendimento de como o sistema imune modula as manifestações clínicas de doenças neurológicas e psiquiátricas.
Ambos, Dr. Winter e Dr. Teixeira, enfrentaram as batalhas pelas fronteiras – cada um à sua maneira, pois o alemão declamava Heine pelos campos do sul, enquanto o mineiro ecoa sua própria voz nos versos ora compilados.
Se o médico germânico percorria um mundo em que as fronteiras físicas estavam em constante conflito nos embates territoriais que marcaram a história do Cone Sul, a poesia do médico mineiro também traz a marca da disputa pela delimitação de fronteiras, como pela definição de dirimir a territorialidade da subjetividade do paciente na rigidez pré-moldada e engessada da psiquiatria norte-americana: “Como está seu humor?/Está ouvindo vozes? /Vendo sombras?/Paranoide?/Alguma ideia suicida?/Algum sinal
de abstinência?/A pessoa não tem lugar,/Submersa que está numa lista de sintomas.” (Entrevista psicopatológica).
Em outros versos, os limites fronteiriços se impõem na realidade como práxis da própria medicina norte-americana: “De um lado os americanos, todos brancos./Do outro, os imigrantes de todas as matizes./Osprimeiros conduzem a reunião para pontos irrelevantes/Ou extremamente concretos./Resistem a discutir
conceitos./Resistem a discutir problemas. / Não há o que refletir. /Não há o que melhorar.” (Teatro armado).
E assim “pesquisa a dor o pesquisador” (Dinâmica Íntima) de um mundo de fronteiras por demais delimitadas, por demais rígidas. E, nesse mundo de limites tão herméticos, encontra a angústia de
fronteiras que internamente se esgarçaram: “Noto a radiante alegria de meus filhos. /Tento compartilhar o sentimento./Mas não estou lá,/Absorto no emaranhado de minhas sensações.
/Fragmentado, partido.” (Contraste). Os versos trazem a marca do dilaceramento de divisas que se estiram: “Clama pela poesia que sustenta, sutura,/E também por aquela que rompe e decompõe.”
(Pretensão).
O leitor percorre esse mapa pleno de delimitações formais, mas cuja aparente solidez esconde uma fragilidade quase comovente pelo drama do humano escanteado desses mesmos limites. Os versos, então, resgatam o primado da afetividade, ao conduzir ao reposicionamento de marcos territoriais em bases mais genuínas, mais tangíveis ao toque humano: “Meus pensamentos me superam./Vêm e batem./Vêm e batem./Percolam minhas memórias mais íntimas./Infiltram minhas fissuras mais ínfimas. /Amorfo e fluido,/Assumo a forma que me contém.” (Feito água). Que os versos do Antônio Lúcio – a quem guardo entre as fronteiras afetuosas da amizade – levem o leitor a ter suas fronteiras internas rompidas e depois redemarcadas pelo percorrer dessas páginas.
Por Leonardo Cruz de Souza

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