Em câmara lenta
Brasil, início dos anos 1970. De sua cela no presídio Tiradentes, o jovem paraense Renato Tapajós, que cumpria pena pelo envolvimento em ações de resistência à ditadura militar, escrevia, em letras miúdas sobre papel de seda, os capítulos daquele que se tornaria um dos romances mais impactantes sobre a luta armada, a repressão e a tortura durante o regime militar. Dobrado em pequenos retângulos envoltos em fita adesiva, o romance Em câmara lenta foi dessa forma sendo levado, aos poucos, para fora da prisão – pelos pais do autor, que os colocavam sob a língua, durante suas visitas.
Quando todos os pedaços puderam ser finalmente reunidos em um volume, o romance foi publicado em 1977, três anos depois da saída do autor da cadeia. No entanto, semanas depois do lançamento, Renato Tapajós, foi reconduzido à prisão pelo DEOPS, sob acusação de incitar a subversão, e uma ordem policial determinou a apreensão dos exemplares à venda. O romance teve outra edição em 1979, quando a ditadura ensaiava uma abertura política, e só agora volta a ser publicado. A nova edição traz, entre os aparatos, um posfácio de Jayme Costa Pinto, uma entrevista com o autor, o parecer do crítico Antonio Candido utilizado nos trâmites do processo e o relatório da seção de análise e inteligência do Exército, que tenta simular uma crítica literária para chegar à conclusão de que o livro é subversivo.
Em câmara lenta se desenrola num fluxo de memória: o presente é de desencanto e autocrítica, e as lembranças voltam sempre para as atividades clandestinas do grupo semidesmantelado ao qual pertence o narrador. Há outros tempos, contudo, nesse prisma literário: a recepção das notícias do golpe militar de 1964 numa cidade do interior, os conflitos violentos entre estudantes de esquerda e de direita na rua Maria Antônia, relatos da guerrilha do Araguaia e cenas de uma fuga da prisão. A narrativa, como sugere o título, é cinematográfica e não faltam momentos eletrizantes, entre eles uma ação traumática reconstituída aos poucos.
O pedido de perícia a Antonio Candido para integrar a defesa no processo gerou uma brilhante e elogiosa descrição do arcabouço de Em câmara lenta: “A narrativa, muito moderna, é descontínua, fragmentada, procede por flashes que adquirem certo tom de irrealidade e entra por vezes na dimensão atemporal, que nos arranca do quotidiano presente para entrar no universo da fábula realista”.
A conclusão de Antonio Candido, como era previsível, foi de que o livro não é um convite à subversão. E vai além: o romance de Tapajós pode ser lido até como uma crítica à atividade guerrilheira. Não é por acaso que o narrador do romance insista que aqueles setores a que os revolucionários pretendem representar – os operários, os trabalhadores do campo – não compreendem as ações nem os argumentos dos que optaram pela luta armada. Mesmo assim, o personagem tem consciência de que escolheu um caminho sem volta. “Quem conheceu a morte sabe que o único crime é permanecer na superfície da vida”, constata.
Jayme Costa Pinto considera, em seu posfácio, que “além de abordar de forma incomum os acontecimentos políticos que marcaram o país numa época de recrudescimento da repressão, Tapajós revela uma tendência algo visionária, prenunciando ainda no calor da hora os dilemas que os movimentos de esquerda viriam a enfrentar no período pós-ditadura”. Na entrevista que acompanha o romance, o próprio autor reflete como vê, hoje, a situação das esquerdas brasileiras, e reavalia a importância da obra, quase cinco décadas depois de ser escrito.
Tapajós envolveu-se na resistência à ditadura militar, militando no grupo maoista Ala Vermelha, uma dissidência do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Foi preso em 1969 e ficou detido até 1974. Durante a detenção, escreveu Em câmara lenta. Quando o livro foi publicado, Tapajós foi reconduzido à prisão, e a tiragem, apreendida.