Mulher-bomba
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Flávia Péret tem aftas cronicamente. Elas aparecem sempre que Flávia bebe qualquer bebida alcoólica, especialmente vinho, que ela adora. Então às vezes nos sentamos em algum lugar, ela pede um suco e conversa a noite toda, convencida de que está fazendo a coisa certa. Em outras, pede só uma taça, ciente de que no dia seguinte sofrerá as consequências, mas convencida de que é só humana mesmo e que quer muito aquele vinho. Ela sabe bem onde ficam as pequenas dores e o quanto elas podem incomodar. A maior parte do tempo as pequenas dores é que são reais (e assim os pequenos desejos, as pequenas frustrações, os pequenos deleites, as pequenas revoluções). Estão na boca, no paladar, em todos os dias, em pequenas feridas corriqueiras que se abrem, permanecem ali durante um tempo curto e se fecham.
Conheço Flávia já há vários anos e pude vê-la se apaixonar pela poesia e talvez também recusar a forma como ela é dada frequentemente às mulheres — algo feito também por várias poetas desta geração que admiro profundamente. Em sua escrita, Flávia propõe um outro jogo, que busca o simples, fala claro, diz o que quer. Antes, uma escrita que quer, deseja.
Não se trata de uma poética de metáforas, de jogos de esconder. São jogos de mostrar, mostrar mais, apontar com convicção onde é que vive a poesia nestes tempos difíceis. Nas tarefas domésticas, na avenida Antônio Carlos, na fantasia de carnaval. No sono e no hálito matinal, nas formas de assar bolo. Jogos de mostrar são explosivos, não fazem ameaças, não dão avisos. Resultam em uma poesia que alcança e pega, com as duas mãos, algo que está “aqui / na carne no atrito na voz (…) aqui mesmo / no tédio dos nossos hábitos”.
Na palavra, operada com firmeza e inteligência, operada como jogo em seu próprio sistema — a linguagem —, está, não resta dúvida, um exercício de vida inteira, o de nascer e tornar-se. Mulher-bomba. A mulher-bomba mora na palavra e por causa dela a escrita se torna esse exercício extremo. Sempre violento, mas também tedioso e rarefeito: “nenhuma palavra/ usada (ou esquecida)/ à exaustão”. Mulher-bomba explode com violência algumas vezes. Em outras, a explosão é um líquido lento, diário, silencioso, guardado dentro de um abrigo nuclear. Ou pequenas feridas que ardem só um pouquinho, na hora do almoço, em um beijo, na pronúncia de uma palavra mais ácida.
De alguns poucos meses pra cá, sem espanto nenhum, Flávia Péret parou de reclamar das aftas.
Eliza Caetano