O feminismo é feminino? A inexistência da mulher e a subversão da identidade
Nosso mercado de diagnósticos está aí para comprovar que, dependendo de onde buscamos a solução para um problema, já definimos de antemão como será nomeada a nossa inquietação e que tipo de resposta ela poderá encontrar. Mesmo no caso das famosas questões existenciais — por definição sem resposta —já aprendemos alguma coisa sobre esses mistérios quando decidimos a quem vamos endereçá-los.
Talvez o grande mérito do livro de Maíra, para além do louvável esforço de releitura da história do feminismo queer e do enquadre conceitual da psicanálise lacaniana, seja justamente promover um deslocamento no endereçamento da questão que carrega no título: O feminismo é feminino?
A psicanálise, de Freud a Lacan, ocupa um lugar paradoxal na luta contra o monopólio dos homens sobre a verdade do feminino. Da aposta freudiana na escuta da histeria à crítica do universalismo fálico, elaborada por Lacan, a psicanálise faz o movimento duplo de, por um lado, reconhecer os efeitos mistificadores e redutivos das fantasias masculinas sobre o “outro sexo”, e, por outro, se propor como endereço privilegiado para tudo aquilo que diz respeito à sexualidade feminina. Não é por acaso que, se dirigida a um psicanalista, a questão que orienta o livro se reduziria a uma mera averiguação de se o feminismo atende àquilo que nós analistas já entendemos por “feminino”. E não importa se as “fórmulas da sexuação” lacanianas pensam o feminino como não-totalizável: se um psicanalista está em condição de não ouvir as feministas em nome do que aprendeu com Lacan, então, infelizmente, somos obrigados a reconhecer que o falicismo, tão criticado dentro da psicanálise, continua operante nos seus pontos de interseção com outros campos.
É por isso que cabe chamar a atenção dos leitores para a maneira como, ao evitar essa armadilha, a autora subverte inclusive o alcance do conceito lacaniano: nem toda ao lado da psicanálise de Lacan, nem toda com o feminismo queer de Butler, Maíra demonstra em ato a inventividade que decorre de se remeter a um endereço indistinto.
Por Gabriel Tupinambá
Texto publicado no Le Monde Diplomatique, em 2019, sob o título “Fazendo da
tensão um lugar: feminismo e psicanálise”.
Reedição do livro O feminismo é feminino? A inexistência da mulher e a subversão da identidade de Maíra Marcondes Moreira 1ª edição pela Editora Annablume