SENHORES DO ORVALHO - 1ªED. (2020)
“Eu sou isto: esta terra, e a tenho no sangue. Veja minha cor: parece que a terra soltou tinta em mim e em você também. Esse país é o quinhão dos homens pretos, e todas as vezes que tentaram tirá-lo de nós podamos a injustiça a golpes de facão.” O país é o Haiti e quem fala é Manuel, o protagonista de Senhores do orvalho, de Jacques Roumain, traduzido por Monica Stahel, quase sete décadas depois de sua primeira e única edição no Brasil.
Senhores do orvalho foi lançado originalmente em 1944, pouco depois da morte do autor, e é considerado o romance fundador da literatura haitiana moderna, tematizando os elementos fundamentais do cotidiano do povo negro em sua luta por sobrevivência. Estão presentes a agricultura de subsistência, a religião vodu, a cultura africana reprimida pela elite mestiça e, sobretudo, a natureza violentamente devastada, que se eleva da trama com tanta força e complexidade quanto os personagens. Com estrutura aparentada à fábula e aos mitos fundadores, é também uma obra engajada, marxista, às vezes quase programática, sobre as possibilidades de emancipação de uma maioria oprimida pela via do trabalho.
O protagonista, Manuel, é um lavrador que volta a seu povoado, Fonds-Rouge, depois de quinze anos nas plantações de cana-de-açúcar em Cuba, período em que conheceu a auto-organização dos trabalhadores e participou de uma greve. Ao voltar para a casa dos pais, encontra-os vivendo privações severas num ambiente castigado pela seca. Manuel é recebido com uma cerimônia vodu de boas-vindas em que ocorre uma briga de loás (divindades do vodu), sinalizando a iminência de um conflito. O herói logo perceberá que a vizinhança é marcada por uma divisão entre grupos hostis, originada por uma antiga disputa de terras de família, que acabou em duas mortes.
O primeiro desafio de Manuel será procurar uma nascente de água para criar um sistema de irrigação que volte a tornar férteis as terras de Fonds-Rouge. O segundo é vencer a resignação e a desconfiança mútua no interior da comunidade e unir seus integrantes em torno do trabalho agrícola, requisitos para fortalecê-los frente aos inimigos que representam as elites mestiças: violentos guardas rurais e comerciantes exploradores. A possibilidade de cooperação é simbolizada pelo modo tradicional de organização coletiva do trabalho, pontuado por música e dança – o coumbite. Os conflitos se aprofundam quando Manuel se apaixona por Annaïse, do ramo rival da família, desencadeando um romance ao estilo Romeu e Julieta. No final, Manuel cumpre sua vocação de líder, embora de modo inesperado.
A literatura de Roumain é reconhecida por ter introduzido uma voz haitiana própria, ao evocar os ritmos e sonoridades da língua crioula – uma elaboração buscada pelos intelectuais autointitulados indigenistas. Como observa no posfácio a pesquisadora Eurídice Figueiredo, da Universidade Federal Fluminense, “os dois elementos culturais mais fortemente rejeitados pelas classes letradas eram o vodu, considerado uma superstição a ser eliminada, e a língua crioula, considerado um patois, um dialeto que os falantes praticam mas do qual se envergonham”. Foi no vodu e no crioulo que os indigenistas encontraram a linguagem e a cosmologia particulares da literatura haitiana, que já nasceu moderna ao recusar as formas oficiais de comunicação.
Jacques Roumain, que viveu apenas 37 anos, nasceu em Port-au-Prince em 1907, filho de um fazendeiro. Seu avô materno, Tancrède Auguste, foi presidente do Haiti entre 1912 e 1913. A partir de 1915, quando o Haiti foi ocupado pelos americanos, diversas famílias de origem negra, que até então detinham o poder político e econômico, tiveram de se afastar. Assim, Jacques Roumain foi enviado à Europa para estudar. Voltou para o Haiti aos 20 anos e desde então passou boa parte da vida na prisão (inclusive uma vez na França) ou no exílio por suas atividades políticas, entre elas a fundação do Partido Comunista do Haiti, em 1934. Fundou três periódicos, entre eles a La Revue Indigène, que reuniu intelectuais defensores de uma revolução cultural autóctone. Manteve contato frequente com outros escritores engajados, como o cubano Nicolas Guillén, o martiniquês Aimé Césaire e o norte-americano Langdon Hughes. No Brasil, foi Jorge Amado o responsável, em 1954, pela publicação de Senhores do orvalho, sob o título Donos do orvalho, na coleção dirigida por ele, Romances do Povo.
Roumain foi também um importante etnógrafo, voltado para a formação ancestral da cultura haitiana, além de poeta e ensaísta. Antes de Senhores do orvalho (1944), publicou dois romances, La Montagne ensorcelée [A montanha enfeitiçada, 1931] e Les fantôches [Os fantoches, 1931], e o ensaio Les Griefs de l’homme noir [As dores do homem negro], de 1939, entre outras obras. Roumain morreu no México, onde servia como embaixador de seu país, de causas não esclarecidas – à época, houve suspeita de envenenamento.
Senhores do orvalho inspirou dois longas-metragens, um homônimo, de 1974, feito para a televisão francesa, e outro intitulado Cumbite, de 1964, dirigido pelo mais importante cineasta cubano, Tomás Gutiérrez Alea.
Com projeto gráfico da Casa 36, dos designers Camila Lisbôa e Fernando Iervolino, o livro é encadernado em capa dura, tem impressão em serigrafia e será publicado com diferentes capas, nas quais a ilustração, que evoca as cores terrosas do ambiente do romance, varia. A edição impressa tem tiragem limitada a 1.000 exemplares, todos numerados a mão, e será lançada simultaneamente em versão eletrônica.