TEMPO DIVERSO
R$59,00
Coração sem plumas
Anelito de Oliveira
Kiko Ferreira estreia em 1982 com Cordiana. Este seu Tempo diverso apresenta, portanto, 40 anos de dedicação ao ofício do verso! Só isso é motivo de sobra para que vejamos este produto aqui pelo prisma da admiração. Não é fácil estar poeta por mais de alguns meses, alguns anos, quanto mais por toda a vida adulta. Estar poeta é mais difícil que ser poeta, sem dúvida. Estar é um fora, um “dehors”, para recordar o Foucault mais desconcertante, que tem consequências. Diria que a primeira delas é um atrito com o dentro, com o “dedans”, com a própria interioridade.
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Dir-se-ia que a particularidade de Kiko Ferreira, que já se apresenta na sua coletânea de estreia e permanecerá ao longo da sua Obra, é a agudizacão terminal da banalidade da beleza erótica. Não seria apenas a banalidade da beleza descortinada por Baudelaire, explorada pela linhagem “coloquial-irônica” dos simbolistas, modernistas e quejandos diversos. Na penúltima década do século XX, o vínculo entre beleza e eros torna-se cada vez mais insustentável em razão do consumismo. Este, como sabemos, confere mais valor de uso e de troca às coisas que aos sentimentos, o que, no limite, culmina na coisificação dos corpos.
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Kiko Ferreira e sua geração na Belo Horizonte dos 1980 encontram, como na canção de Milton e Brant, um caminho de pedra pela frente, um cenário no qual era difícil sonhar, e a morte, que Lévinas concebe como a “não-relação”, seja uma morte real ou simbólica, se lhes afigura como possibilidade iminente. Entre uma margem e outra – a do sonho e a da morte –, interpõe-se a do desejo, que constitui uma espécie de simulacro de sentimento nessa poética, uma vontade de sentir barrada pela vida social cada vez mais inautêntica, produzida por agências de publicidade e emissoras de rádio e TV de acordo com interesses dos donos do poder político e econômico. Desejo é, como Arnaldo Antunes vociferava no Titãs, “necessidade e vontade”.
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Poeta de ouvido, Kiko Ferreira logrou auscultar, escutar o lado de dentro, não apenas o lado de fora documentado pelos “media” e historiadores, das últimas quatro décadas. Este Tempo diverso, com toda a ambiguidade evidente, apresenta uma espécie de arquivo musical construído aleatoriamente, com as notas-poemas de cada etapa do processo criativo lançadas com delicadeza, sem qualquer pretensão a aparecer, a fazer sucesso, digamos. O “cool jazz” de Kiko Ferreira se dirige discretamente à nossa sensibilidade, estimulando-nos a harmonizar intimamente os tantos antagonismos que nos atravessam aqui e alhures.
Kiko Ferreira é mineiro de Belo Horizonte, da safra de 1959. Poeta, jornalista, radialista e letrista bissexto, lançou os livros Cordiana (1982), Belo blue (1987), Cio em setembro (1989), Beijo noir (1996), Solo de kalimba (2003), Stet (2007), Musikaligrafia (2009), Slow food (2016) e Manual de berros (2020). Participou da coletânea Entrelinhas, entremontes: versos contemporâneos mineiros (2020), que reuniu as vozes representativas da poesia mineira contemporânea.
Desde meados dos anos 1970 vem se revezando no jornalismo cultural, com ênfase em música. Escreveu em vários veículos, como os jornais Estado de Minas, Hoje em Dia, Jornal de Shopping, Diário de Minas, Jornal de Minas e Jornal de Ipatinga, e em revistas como Palavra, Cartas de Minas, IstoÉ Minas e Gass. Escreveu ainda sobre gastronomia na revista Na Sala e foi jurado da Vejinha e do Comida di Buteco.