Xis e outras histórias

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Da crônica da província à guerra civil, da sátira mais mordaz ao intenso lirismo. A produção multifacetada do russo Ievguêni Zamiátin (1884-1937) se encontra em toda sua força em Xis e outras histórias. São cinco novelas escritas entre 1917 e 1921 que em tudo diferem também de sua obra mais conhecida, Nós (1920), a primeira das grandes distopias literárias. 

As histórias permitem conhecer de perto a prosa experimental do escritor, vívida e perfeitamente moderna, mesmo depois de um século, e evidente na tradução minuciosa de Irineu Franco Perpetuo, que também fez a seleção e o posfácio da edição. O volume conta ainda com uma autobiografia singela e poética de Zamiátin (1928) e a carta que escreveu ao ditador Josef Stálin para pedir a permissão de emigrar (1931). 

Um crítico viu nos contos iniciais de Zamiátin um mosaico de detalhes – um método “similar ao do cubismo em pintura” –, definição apropriada para um representante do fervilhante cenário de vanguardas que marcou os anos anteriores e imediatamente posteriores à Revolução de 1917. Como a maioria dos bons escritores de sua geração, Zamiátin foi duramente perseguido e difamado por Stálin e seus asseclas – uma ironia trágica, já que tinha sido alvo também do regime czarista. 

A postura crítica talvez seja o único traço comum presente nessas histórias. Na impagável “Da província”, seu primeiro texto publicado, um herói picaresco, péssimo aluno e açoitado pelo pai, ganha o mundo com mais sorte do que em casa. “Os ilhéus”, que escreveu enquanto supervisionava, na Inglaterra, a construção de navios quebra-gelo russos, satiriza os rapapés e moralismos da alta burguesia britânica em um enredo atropelado pelos signos da era da velocidade. “O Norte” é uma poética história de pescadores em meio a paisagens geladas. “Conto sobre o mais importante” é uma abordagem fantasmagórica da guerra civil que irrompeu após a Revolução de 1917. E o humor retorna em “Xis”, história de um diácono “arrependido” – um daqueles “vira-casacas” abominados por Zamiátin – que abandona a religião para pregar o marxismo. 

Na Rússia, esse caráter crítico de sua obra, assim como seu antimilitarismo, o tornaram um desafeto da censura czarista. Zamiátin chegou a ser levado a julgamento e, embora inocentado, ficou um período sem publicar. Mesmo assim, foi uma figura central da vida cultural da antiga capital russa por cerca de duas décadas. Atuou como mentor dos Irmãos Serapião, um movimento de jovens escritores que defendiam a liberdade de convicções e formas literárias. 

Em 1919, o autor teve seu apartamento revistado pela Tcheká, a então polícia política dos bolcheviques, e passou uma noite na cadeia, onde foi interrogado. Sua ficção e seus ensaios continuaram a observar os preocupantes caminhos da Rússia em direção a políticas repressivas. Durante esse período, escreveu Nós, que imagina um mundo em que as pessoas moram em casas de vidro para que seja possível vigiá-las 24 horas por dia e são identificadas apenas por números. Duas décadas depois, o romance inspiraria George Orwell a escrever 1984.  

Nós só veio a ser publicado no país em 1988, com a abertura política do dirigente Mikhail Gorbatchov. Uma tradução apareceu em 1924 nos Estados Unidos. Mais tarde, o autor conseguiu, por contrabando dos originais, que o livro fosse publicado em russo na Tchecoslováquia. 

Mesmo sem ter sido publicado na Rússia, Nós levou Zamiátin a ser expulso da Associação Russa dos Escritores Proletários. Suas histórias e peças de teatro foram “apagadas” no país. Quando escreveu a carta a Stálin, o escritor Maksim Górki interveio e conseguiu que ele fosse exilado. Zamiátin esperava receber permissão para voltar à Rússia, mas viveu em Paris pelo resto da vida, pobre e doente, embora sempre fiel ao bolchevismo. Durante a estada na capital francesa, escreveu pouco, mas foi o autor do roteiro de O submundo, adaptação da peça “Ralé”, de Górki, dirigida por Jean Renoir.  

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